Nada substitui alguém que ocupou plenamente o seu lugar em vida.

No dia 29 de junho de 2000, tocou o telefone de casa, de manhã. Atendi sabendo que não era pra mim, pelo horário. Só que era: minha avó me ligava para me parabenizar. Eu fiquei surpresa com a ligação, e ela me contou que naquela mesma data, em 1984, seria a primeira e última vez que ela subiria na garupa de uma moto. Foi com meu pai ao hospital, para me ver nascer.

Ela me contou isso bem humorada, carinhosa, com um tom de voz ligeiro e bem específico. Ela fala ligeirinho. Sempre, todos os anos, me relembra que fui a primeira netinha, e que isso tinha algo especial para ela. Sempre tive o privilégio de me sentir especial, mesmo compartilhando-a com tantos primos, primas, agregados, vizinhos e amizades que ela fazia em profusão.

Ela sempre esteve lá: me deu meu primeiro banho, e quando aos 15 dias de idade, achou que eu chorava de fome, me desmamou do peito da minha mãe, trocando por uma mamadeira de mandioca com algo mais.

Amanhã serão 20 dias sem minha avó, depois de 36 anos (todos os da minha vida) com ela.

Uma das suas muitas (diversas) idiossincrasias era o pavor genuíno que sentia de trovoada. Era necessário cobrir todos os espelhos de casa, ficar embaixo da mesa e deixar a bíblia aberta em tal passagem (talvez fosse um salmo). E também de escada rolante. Ela afirmava com muita convicção que tinha perna era pra caminhar, e subia as escadas convencionais.

Mas há anos já dizia que tinha se preparado o suficiente para andar de avião, só bastava a ocasião correta e alguém que pudesse acompanhá-la. Por terra cruzou a fronteira até a Argentina, e percorreu mais quilometragem que muita gente 30 anos mais jovem.

Em algum momento eu já disse odiar as redes sociais, mas hoje eu sou grata por encontrar pedacinhos da minha Vó no facebook, no instagram ou no whatsapp. Tenho medo que tudo isso seja insuficiente para me abastecer do seu precioso combustível de alegria, autenticidade e simplicidade de que tanto me nutria.

Nunca conheci alguém tão obstinada, tão decidida e firme sem ser amarga. Tão vivida, sem ser soberba. Minha avó possuía uma clareza cristalina de que tinha um papel muito importante a cumprir, muitas responsabilidades a desempenhar.

Minha avó viveu atenta. Esperta, alerta e ativamente viva. Minha avó topou todas e mais algumas ao longo da sua imensa vida. Ela fazia diferença na vida de dezenas, talvez centenas de pessoas só com a sua capacidade de se colocar a disposição para servir.

Minha avó faleceu amedrontada. Eu vi nos olhinhos arregalados quando tentei transmitir só com as palavras, e os meus olhos, por cima da máscara, que aquela UTI era temporária. E que tudo iria ficar bem. De fato, a UTI só durou outros 4 dias.

No seu funeral, comecei a enxergar o tamanho da fratura que a sua partida iria causar. Não só em mim, ainda que eu não seja mais a mesma agora. De coração partido, vi um primo meu em frangalhos, tentar fazer o sinal da cruz diante do corpinho dela. Cada pessoa que chorava, abria de novo a ferida em carne-viva que era saber que o banquete estava acabado.

Não haveriam mais tardes de conversa, nem comentários sobre tudo e todo mundo. Como aquela tarde em que minha mãe esqueceu que havia marcado algo com ela no centro da cidade, e ela ficou sentadinha dentro da igreja esperando irmos buscá-la. E quando chegamos, sussurrou que velho era uma desgraça mesmo, todo mundo esquecia.

Quando ouvir rádio e tocar uma música do Daniel, sempre vou lembrar de como ela fechava os olhinhos para cantar a música junto. Minha avó era uma fã ardorosa de Daniel e eu achava esse detalhe sobre ela cativante.

Além de tudo o que ela deixou em forma de lição sem ser pedante ou metida a conselheira, me comove a maneira como ela era sempre a mesma em qualquer ocasião. De personalidade forte, humana e cheia de contradições, minha avó sabia não pesar. Sabia acolher, e sabia dar um jeito de fazer caber qualquer história fora do padrão dentro do seu sistema.

Todos os momentos com ela eram simples e as pérolas que ela soltava, saíam com facilidade, sem muito treino ou afetação. Você nunca sabia muito bem onde ela estava, porque ela tinha esse dom de circular o tempo todo, se esgueirando pelas laterais, e monitorando cada detalhe do ambiente.

Minha avó não fazia as unhas, o buço ou enfeitava a própria casa com requinte. Ela tinha um banco de madeira comprido para servir o café, que depois viraram dois, e ainda mais. O que tinha de especial na sua casinha, onde passei talvez alguns dos meus melhores momentos de infância, no fim das contas, era ela mesmo.

E mesmo que tenha tido tanto dela, sei que o buraco é do tamanho do potencial que ainda via de coisas que ela poderia ter vivido e do quanto ela ainda teria tornado tantos momentos pequenos e simples da vida, algo completamente especial e único, só pelo fato de compartilhar dele conosco.

Minha garganta aperta e os meus olhos ardem de chorar pelo bem precioso que não está mais aqui. Por mais que as circunstâncias da partida indiquem que ela precisava descansar, para quem se nutria de um amor tão carinhoso e rico, a sensação do empobrecimento é inevitável.

Nada substitui alguém que ocupou plenamente o seu lugar em vida.

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