A Filha Perdida e This Is Us como antídotos

Eu vou tentar não revelar spoilers, mas não posso garantir que não o faça.

Em 2020 eu descobri a super aclamada série This Is Us, que nesse momento, estou correndo para terminar (ela já terminou, oficialmente em junho de 22). Como todo mundo com quem conversei, fiquei encantada com a qualidade dos diálogos, as sutilezas várias, me identificando com as tramas e tudo o mais.

Agora, já com toda essa kilometragem rodada, estando na reta final, tinha já alguns episódios que eu vinha percebendo uma tinta super carregada nas virtudes de Rebecca como mãe, nos flashbacks dela de infância. Certa cena, a Kate liga para ela e comenta como, apesar deles estarem longe de ser ricos, eles não sentiam que faltava nada – e que isso era uma espécie de mágica que ela fazia.

Mágica foi um adjetivo utilizado para descrever a Rebecca pelos seus filhos em diversos episódios, sendo que nos inúmeros flashbacks da infância e adolescência deles, lá estava aquele poço infinito de paciência, criatividade, beleza e compaixão para com todos. Ela faz um olhar, muito específico, cheio de meiguice e compreensão que me faz sentir algo agudo como uma alfinetada: mulheres assim existem, e você não é uma delas.

Tipo isso aqui: sempre essa carinha meio “ownnn”

Daí corta para o infinito mês de agosto e a leitura da Filha Perdida, de Elena Ferrante – que eu aprendi a amar em 2020, quando caiu no meu colo a tetralogia napolitana. Desde o primeiro livro, me vi identificada nas personagens femininas com suas contradições, querendo superar a família, se diferenciar – sem jamais conseguir completamente. A Filha Perdida parece até um rascunho da tetralogia napolitana, em que as histórias são passadas rapidamente, mas muito desenvolvidas em quatro livros posteriores.

Vale dizer que o filme da Netflix é muito bacana, mas o livro é muito mais profundo.

A Leda tem tantos defeitos, tantos. E eu consigo entendê-la, naquele monólogo sem fim, meio resmunguento, sobre como ela se sente, como ela vê as pessoas ao seu redor, como se sentia frustrada durante a vida toda. Leda pensa, fala e até age como algo que tenho no meu subsolo – algo que não quero que ninguém conheça, e tento com força abafar, mas parece sempre ter uma rachadura, uma fresta que vai fazer revelar.

Minhas colegas do clube de leitura se dividem entre detestar a personagem principal, considera-la narcisista, péssima mãe, e se identificar com algumas de suas pulsões. A coragem de sumir no mundo, a impaciência com as crianças, o piti na praia, o fato de se referir à gestação da filha como “um pedaço de ferro vivo na barriga”. Ela conta da maneira mais franca que se pode ler como idealizou o casamento, a maternidade, a carreira acadêmica, as férias na praia, e como a realidade nunca correspondia.

Ela vai monologando como se falasse sozinha – não está contando oficialmente a história de sua vida. E é por isso que não esconde o que sentia quando estava pressionada, infeliz ou ligeiramente intrigada com alguma coisa. Leda nos dá acesso ao seu subsolo sem nenhuma limpeza prévia para mascarar os pensamentos mais feios que alguém pode ter. E acontece que o subsolo dela me deixa desconfortavelmente consciente de que eu penso parecido, lá onde ninguém está ouvindo.

Quando Rebecca Pearson tenta acordar o marido para atender um dos trigêmeos, pois seria a sexta vez dela só naquela noite e não consegue, ela faz aquele olhar frustrado, porém não tem raiva. Tudo que ela faz parece bonitinho e meigo, exatamente como eu adoraria soar mas não consigo. Quando frustrada, rapidamente viro uma pessoa maldosa de frases ferinas. E perco a minha capacidade de ser solidária, ficando julgadora e impaciente. Faço tudo isso do alto do privilégio de quem dorme regularmente 9 horas por noite, não limpa a sujeira de ninguém além da própria e tem escolhas na vida.

O meu grande pavor nesse passo em falso chamado maternidade é justamente me tornar uma versão permanente dessa Leda, misturada com a mãe da Leda, que até tenta abafar o grito de raiva, mas acaba escapando pelas frestas e empesteando o ambiente com o fedor. Há anos me sinto pacificada de que há um considerável risco de que eu me torne uma versão concentrada em amargor, que é exatamente como me porto quando pressionada por alguma condição externa. E se tem algo com imenso potencial de ratoeira, sem chance de fuga, é o fato de você saltar do precipício de uma vida totalmente desconhecida, em que você é responsável integralmente por alguém que nem conhece.

Leda diz em certa altura que “temia que me acusassem de ser como eu de fato era: distraída ou ausente, absorta em mim mesma” – e isso me é tão familiar que chega a parecer que fui eu quem escrevi. Leda pensa e expressa ideias que poderiam ser minhas – se eu poderia cometer os mesmos atos, não posso afirmar, mas sei que sou capaz de pensar e sentir do mesmo jeito.

Já Rebecca, tão mágica, bela, benevolente e cheia de compaixão, é tudo aquilo que eu queria ter tido da minha mãe, quando criança, e tudo aquilo que eu gostaria de ser, caso fosse mãe. Mas até que ponto pode ser real uma personalidade com tamanha sapiência lá escondida numa dona de casa da década de 80, mãe de três com o marido dependente químico? Rebecca foi até o último dia a mocinha de novela que eu aprendi a admirar muito pequenininha, nas novelas que via na televisão. Assim como as casas não eram parecidas com a minha, as mulheres não se pareciam com ninguém que eu conhecia. Era tudo inverossímil porém anestesiante, intoxicante e moldou minha visão ideal.

Há muitos anos, eu trato em terapia o divórcio do ideal e do real, frustrada com o meu desempenho distante das idealizações. Constantemente, minha psicoterapeuta trabalha comigo essa questão, sendo que inclusive, já falamos sobre eu me sentir culpada pelos meus pensamentos e sentimentos, e como eu preciso aprender a permitir que eles existam, sem que pensar signifique necessariamente fazer. Racionalmente eu já entendi, mas inconscientemente, sigo me identificando mais com a imperfeição absurda, beirando o patológico de Leda, do que com a infinita capacidade de se doar de Rebecca.

Daí lá pelo início da última temporada, numa cena em que Rebecca chega de surpresa num evento super desgastante para Jack, meu namorado comenta: tem vezes que eu vejo em ti esse olhar da Rebecca para mim. E lá vou eu para mais uma tonelada de sessões de psicoterapia, porque não sei o que fazer com essa novidade tão ambivalente.

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