A relatividade das perdas

Cogitei não escrever esse texto, por receio de que fosse interpretado como aquelas maldosas lições embutidas de “seja mais grata pelo que você tem”.

Mas vou contar mesmo assim, uma pequena história sobre duas sextas-feiras atrás.

Eu andava pelos corredores quando passei pela Néia (pseudônimo), uma pessoa muito querida por mim e que trabalha na limpeza aqui da repartição. O marido dela é diabético e isso o deixa muito deprimido, não adere muito bem ao tratamento. Essas coisas.

No minuto que passei por ela, ela me sinalizou, com o celular na orelha, para eu esperar. Ela com os olhos molhados me dizia que o marido havia recém contado que no caso dele, foi descartada a necessidade de amputação das pernas. Examinaram e viram que os membros “estavam vivos”, nas palavras dela. Nos abraçamos, ela toda arrepiada e emotiva.

A gente que nem cogita perder um membro, fica assim quando “recupera” aquele que estava condenado…

Horas mais tarde, precisei telefonar a outro colega, coincidentemente, com as duas pernas amputadas. Mas o caso dele foi acidente de moto. Ele conversou comigo sobre a vaquinha online que estava fazendo, e que ele já estava muito bem de muletas, se virava, ajudava a esposa em casa, mas as próteses facilitariam ele retornar ao trabalho.

A razão de eu ligar para ele, seria falarmos sobre o processo de aceitação da nova condição, oferecer apoio e encaminhamento a algum serviço de saúde mental. Quando toco no assunto, ele me diz:

– Essa é a pergunta que mais me fazem, como está a minha cabeça. Mas eu estou muito bem da cabeça, não tenho problema nenhum com isso. Só estou ansioso para voltar ao trabalho, e para isso, as muletas precisam vir. E foi por isso que eu fiz essa vaquinha online, para acelerar, porque está demorando demais pelo SUS.

Conversamos mais um pouco, e eu fiquei tão pensativa depois desse dia.

Uma pessoa chora de alívio ao saber que não irá amputar as pernas. Outra, com cerca de um ano de amputação, “se vira super bem de muletinhas” e participa do trabalho doméstico. Entre esses dois casos, me dá um pouco de constrangimento saber que eu certamente seria o primeiro caso.

Na iminência de “recuperar” algo que já dava como perdido, algo que antes dei por garantido (tipo o meu pé), choraria de alívio. Não sei se conseguiria simplesmente seguir adiante, olhar em frente, para aquilo que eu ainda posso realizar, depois de amputar duas pernas.

Eu gostaria de aprender a ser mais como o segundo caso. Espero que ainda esteja em tempo.

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